O conhecimento tem o seu preço — e, muitas vezes, esse preço é a tristeza. Ao nos tornarmos conscientes de um problema, não conseguimos mais desver, esquecer ou ignorar.
E é exatamente isso que começa a acontecer com o uso massivo da inteligência artificial: a tecnologia que fascina, encanta e já faz parte do cotidiano de milhões de pessoas tem um custo ambiental que ainda passa despercebido da maioria. Entre os impactos que ganham cada vez mais atenção, um se destaca pela urgência silenciosa: o consumo de água potável.
Grandes modelos de linguagem, como o ChatGPT, consomem milhões de litros de água não apenas durante o processo de treinamento — quando as máquinas são alimentadas com trilhões de dados para se tornarem “inteligentes” — mas também diariamente, enquanto respondem perguntas, elaboram textos, traduzem conteúdos e auxiliam empresas, estudantes e profissionais em todas as áreas. A água entra no processo principalmente como mecanismo de resfriamento dos servidores, que aquecem de forma intensa e constante durante os cálculos complexos realizados por esses sistemas. O que parecia etéreo e limpo revela agora a sua fisicalidade: inteligência artificial também tem sede.
Segundo pesquisadores da Universidade da Califórnia, o treinamento de um único modelo de IA de última geração pode consumir o equivalente a cinco milhões de litros de água — o suficiente para encher duas piscinas olímpicas. E isso é apenas o começo. Manter esses sistemas funcionando exige infraestrutura energética e hídrica contínua. Em média, uma interação com IA pode consumir até 500 mililitros de água, dependendo do local e da tecnologia usada no data center que processa a solicitação. Parece pouco? Multiplique isso por bilhões de usuários, todos os dias, em todo o planeta.
Diante desse cenário, especialistas já alertam que, mantido o ritmo atual, a indústria da IA pode se tornar tão ou mais impactante do ponto de vista ambiental quanto setores historicamente problemáticos, como o da aviação ou da mineração. E tudo isso em um mundo onde a crise hídrica já é realidade. A água potável, que representa menos de 1% de toda a água disponível no planeta, está se tornando cada vez mais escassa — e agora compete silenciosamente com a tecnologia por sua própria sobrevivência.
A pergunta que se impõe é dura, mas necessária: faz sentido consumir esse volume de um recurso tão essencial para manter sistemas de IA operando? Em um futuro próximo, quando enfrentarmos disputas hídricas mais intensas, olhar para trás e perceber que gastamos água para gerar textos automatizados e responder e-mails poderá soar, no mínimo, contraditório.
Algumas iniciativas buscam reduzir esse impacto. Empresas como Google e Microsoft estão migrando parte de seus data centers para fontes de energia renovável e investindo em resfriamento a ar ou em sistemas de reuso da água. Há também pesquisas voltadas para a criação de modelos de IA menores, mais eficientes, que possam operar com menos consumo energético e hídrico. Mas essas ações ainda são pontuais diante da magnitude do problema.
Regulações específicas sobre o uso de água por grandes empresas de tecnologia ainda são raras. E, na ausência de regras claras, o crescimento acelerado da IA segue sem freio, alimentado por uma demanda voraz — inclusive dos próprios usuários, que se encantam com a agilidade e a precisão dessas ferramentas. E aí se instala o paradoxo: quanto mais se conhece a potência da IA, mais se reconhece sua fragilidade estrutural. Como numa peça de teatro grega, a tragédia se desenha justamente na revelação da verdade.
A filósofa Hannah Arendt dizia que o conhecimento carrega consigo uma espécie de angústia, pois revela ao ser humano a extensão de sua responsabilidade no mundo. E é isso que sentimos agora. Saber que a tecnologia que utilizamos diariamente tem implicações ecológicas profundas nos obriga a repensar escolhas, hábitos e prioridades.
A inteligência artificial não é uma vilã — mas como toda tecnologia, depende das decisões humanas. O que está em jogo, neste momento, não é apenas a inovação, mas o futuro da água no planeta. Em tempos de mudança climática, desertificação e disputa por recursos, a pergunta que deveria ecoar em todos os fóruns tecnológicos não é “o que mais a IA pode fazer?”, mas sim “a que custo?”.